Há séculos, a liberdade contratual é tratada como pilar das relações privadas. O princípio da autonomia da vontade — consagrado no Direito Civil brasileiro — assegura às partes a liberdade para contratar, negociar cláusulas e moldar a relação jurídica conforme seus interesses.
Mas em um cenário corporativo cada vez mais regulado, contratos em escala e governança exigente, será que essa autonomia permanece tão ampla quanto parece?
Neste artigo, analisamos o alcance e as limitações do princípio da autonomia da vontade à luz da realidade enfrentada pelos departamentos jurídicos na atualidade.
O que é o princípio da autonomia da vontade?
O princípio da autonomia da vontade é um princípio jurídico que garante que as partes possam livremente definir os conteúdos dos seus contratos, desde que sejam respeitados os limites legais e a ordem pública. O Código Civil reforça essa prerrogativa:
“Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
Esse dispositivo reforça que a lei parte do pressuposto de que os contratantes estão em igualdade de condições e podem estabelecer parâmetros objetivos para cláusulas, revisão e resolução do contrato.
Na prática, esse princípio oferece liberdade para estruturar contratos sob medida, que éalgo crucial para empresas que operam com modelos complexos, produtos customizados e relações comerciais estratégicas. No entanto, essa autonomia não é absoluta.
Leia também Benefícios da gestão eletrônica de documentos
Qual a importância do princípio para a segurança jurídica?
Mesmo com limitações, o princípio da autonomia da vontade oferece benefícios durante negociações contratuais. Alguns deles são:
- Incentiva a confiança entre as partes, transparência e a criação de acordos válidos;
- Permite que as partes decidam as condições de um negócio, defendam seus interesses e as obrigações que serão assumidas;
- Reduz a inadimplência, pois as partes definem livremente obrigações que estão dispostas a cumprir;
- Contribui para a agilidade nas negociações, já que as partes podem adaptar o contrato às suas necessidades específicas;
- Valoriza a autonomia individual e a liberdade econômica, incentivando o empreendedorismo e a livre iniciativa;
- Evita conflitos judiciais, pois contratos bem estruturados e ajustados à vontade das partes tendem a gerar menos disputas no futuro.
Como o princípio da autonomia da vontade se aplica nos contratos?
Entenda como esse princípio se aplica aos contratos prática:
- Escolha das partes contratantes: as pessoas são livres para decidir com quem desejam firmar um contrato;
- Definição das cláusulas contratuais: as partes podem negociar e estabelecer prazos, valores, formas de pagamento, responsabilidades, penalidades por descumprimento etc.;
- Estabelecimento da forma de resolução de conflitos: é possível incluir cláusulas que definam, por exemplo, a utilização da arbitragem ou mediação em vez da justiça comum;
- Determinação das condições de extinção ou renovação do contrato: as partes podem prever quando e como o contrato poderá ser encerrado ou prorrogado;
- Escolha do foro ou da lei aplicável (em contratos internacionais): em certos casos, as partes podem escolher qual legislação será usada para interpretar o contrato e onde ele será discutido judicialmente, se necessário.
Três limites clássicos à autonomia da vontade
Por mais que as partes tenham liberdade para negociação, ela é restrita por outros princípios igualmente fundamentais:
Função social do contrato
O contrato deve produzir efeitos positivos para ambas as partes e não pode causar desequilíbrio social. Relações marcadas por assimetrias extremas, como contratos firmados em condições abusivas, podem ser revistos ou anulados.
Por exemplo, grandes empresas que contratam prestadores de serviços individuais devem estar atentas à proporcionalidade e à reciprocidade das cláusulas, especialmente em cenários de dependência econômica.
Boa-fé objetiva
A boa-fé exige lealdade, honestidade e respeito mútuo. Cláusulas ambíguas, omissões deliberadas ou desequilíbrios ocultos são interpretados contra quem os redigiu.
As cláusulas de limitação de responsabilidade, exclusividade ou renúncia de direitos precisam ser analisadas sob essa lente, especialmente, em contratos de longo prazo.
Normas de ordem pública
Ainda que as partes concordem, nenhum contrato pode contrariar regras jurídicas ou princípios constitucionais. A liberdade não se sobrepõe à dignidade da pessoa humana, aos direitos trabalhistas ou às regras de defesa do consumidor, por exemplo.
Autonomia da vontade versus autonomia privada: qual a diferença?
Enquanto a autonomia da vontade se refere à liberdade de contratar, a autonomia privada é mais ampla: trata da liberdade do indivíduo de conduzir sua vida civil, como criar empresas, definir regimes de bens, fazer testamentos etc.
Em outras palavras, enquanto a primeira tem uma conotação mais subjetiva e psicológica, a segunda se refere ao poder da vontade de forma mais real, concreta e objetiva.
Contratos de adesão e a relativização da autonomia da vontade
Um contrato de adesão é um documento usado por empresas para ofertar produtos e serviços aos clientes. Ele é padronizado e formulado com base na projeção do negócio, que pode ser uma operadora de telefonia, banco ou plano de saúde.
Nesses casos, a autonomia da vontade é bastante reduzida ou até inexistente. Isso porque o consumidor não participa da elaboração do contrato, ele apenas aceita ou recusa os termos previamente estabelecidos pela empresa.
Não há negociação de cláusulas, prazos ou valores. Tal situação cria um desequilíbrio natural entre as partes, já que uma delas tem total controle sobre o conteúdo contratual.
É justamente nesse contexto que entra o papel fundamental do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O CDC permite, por exemplo, a anulação de cláusulas abusivas, a interpretação mais favorável ao consumidor em caso de dúvida e o direito à informação clara e adequada sobre o produto ou serviço contratado.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforça essa proteção. Em diversos julgados, o STJ entende que, nos contratos de adesão, a autonomia da vontade do consumidor é presumidamente limitada, justificando a aplicação de regras mais rígidas contra cláusulas desproporcionais.
“Nos contratos de adesão, o consumidor não participa da elaboração das cláusulas contratuais, o que demanda uma interpretação mais restritiva em relação a cláusulas que limitem direitos.” (REsp 1.091.875/SP)
Essa posição doutrinária e jurisprudencial deixa claro que, embora a autonomia da
vontade seja um princípio importante, ela deve ceder quando confrontada com a
necessidade de equilíbrio e justiça nas relações de consumo.
Em resumo, a liberdade de contratar pressupõe também controle, governança e padronização inteligente. Sem isso, o risco de violações contratuais, cláusulas abusivas ou inconsistências cresce exponencialmente.
Com a tecnologia certa, o jurídico passa a ser o guardião da autonomia responsável, garantindo liberdade com conformidade.
Quer ver na prática como isso se aplica à sua operação? Descubra como estruturar sua gestão contratual para honrar a autonomia, sem perder controle, acesse o artigo “Guia definitivo da Gestão de Contratos: o que é, boas práticas e ferramentas”.